Monday, January 10, 2005

Momentos perdidos

"A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade... Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas - de realidade que era, a ilusão - assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele próprio, se o incerto outro viveria... Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar... Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão - e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto... E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira. Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos... E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser... Zumbe uma mosca, incerta e mínima... Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza sossobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece... A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora... Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos... Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera. Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é. Não choremos, não odiemos, não desejemos... Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição..."

o meu livro preferido de todos os tempos do escritor mais brilhante que já li: o livro do desassossego de bernardo soares (não sei se referi no meu perfil que fernando pessoa é outras das minhas pancas!)

2 Comments:

At January 10, 2005 at 11:45:00 AM PST , Blogger Jack said...

E é uma óptima "panca" diga-se de passagem!

 
At January 11, 2005 at 10:45:00 AM PST , Blogger eternal sunshine said...

é verdade :) é uma das minhas melhores pancas. bernardo soares e alvaro de campos são os meus verdadeiros vícios (e o homónimo também). se bem que qualquer coisa que aquele homem escrevia era brilhante!

 

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